sábado, 11 de julho de 2015

O mundo esquecido (6)


Capítulo 6 -  O deserto do esquecimento

No dia seguinte, Salvador acordou muito cedo. Quando abriu os olhos estava sozinho, sentado no sofá vermelho da sala do velho mágico. Não se lembrava do momento em que tinha adormecido, mas pelo visto tinha passado ali a noite. A última imagem que guardava na memória mostrava o velho mágico a oferecer-lhe uma pedra, redonda e branca como um pequeno ovo. Enfiou a mão no bolso das calças e lá estava ela. Sabia que não a podia perder e voltou a guardá-la no mesmo sítio. Então, ouviu passos que se aproximavam. A anã que tinha conhecido no dia anterior entrou na sala, usando desta vez um avental cor-de-rosa com muitos folhos. Nas mãos trazia uma bandeja, coberta com um pano branco.

- Bom dia, Salvador. Dormiste bem? Trago-te o pequeno-almoço. Precisas de recuperar todas as tuas forças antes de partires.

Ao dizer isto, a anã destapou a bandeja e o que Salvador viu fez-lhe crescer água na boca: havia torradas com mel, biscoitos, leite e fruta. Ele devorou tudo até à última migalha, enquanto a anã, sentada no outro sofá com as mãos pousadas em cima do avental, olhava espantada tamanho apetite. A seguir teve um ataque de riso, tão grande que não conseguia parar. Ria, ria, ria. Até que conseguiu dizer, já mais calma:

- Comes sempre assim? És um verdadeiro comilão! Como tu, só conheço o anão barrigudo. Agora, tens de partir. O velho mágico está a dormir, não me atrevo a acordá-lo. Às vezes, fica adormecido durante dias. Mas pediu-me para te dizer que estará sempre contigo, basta que uses o presente que ele te ofereceu.

 - Obrigado pelo pequeno-almoço.

 - Ora essa, não tens que agradecer. Ah, Já me esquecia, que cabeça a minha! O caminho que tens de seguir é este: depois de saíres pelo portão, vira à direita e segue sempre em frente. Não tem nada que saber. Adeus.

Salvador despediu-se da anã, que lhe deu um abraço por entre gargalhadas, e partiu em direção ao deserto do esquecimento. Enquanto atravessava a praça, e depois a rua, Salvador estranhou o silêncio. Se bem se lembrava, quando tinha chegado à aldeia, as casas riam a bandeiras despregadas (ele próprio tinha tido um repentino ataque de riso). Reparou então que as portas se começavam a abrir muito devagarinho, como se bocejassem e estivessem a acordar. Mas à medida que Salvador avançava começaram a rir baixinho, como se não quisessem acordar os anões, que ainda deviam estar a dormir.

Quando chegou junto do muro, o portão estava entreaberto, tal como quando tinha chegado, mas do guarda não havia nem sinal. Salvador saiu e virou à sua direita, entrando num campo coberto de relva macia e muito verde, deixando para trás a aldeia das casas risonhas. Pensou então no que o velho mágico lhe tinha dito: quem atravessava o deserto do esquecimento corria o risco de se esquecer de quem era e perder-se para sempre na sua areia dourada; para o evitar, era preciso dizer umas palavras antes de lá entrar. Mas que palavras seriam essas? Salvador não se lembrava. Decidiu continuar a caminhar, quando lá chegasse logo veria o que fazer.

A partir de certa altura, a relva foi ficando cada vez mais amarela e as poucas árvores que existiam desapareceram. Ao olhar para o céu, Salvador viu que a luz do sol o tornava muito azul e brilhante (viu também que continuava a não haver nuvens) e de repente sentiu muito calor. Foi então que viu o princípio do deserto. Foi-se aproximando, até que parou no sítio exato onde ele começava, tendo o cuidado de não avançar nem mais um passo. A areia tinha uma cor dourada, e estendia-se a perder de vista. Aqui e além, viam-se pequenas manchas azuladas. Pareciam estrelas. Assim de repente, Salvador achou que o deserto fazia lembrar a colcha que a avó lhe tinha oferecido e que estava estendida na sua cama: amarela, bordada com estrelas azuis. Então, aconteceu uma coisa: as manchas começaram a mover-se. Salvador curvou-se e olhou atentamente. O que pensou serem estrelas eram afinal pequenos caranguejos. E em cima da carapaça tinham fartos bigodes azuis, mais parecendo bocas que caminhavam. Um deles, com um bigode muito farfalhudo, chegou junto de Salvador, parou mesmo junto dos seus pés, mas depressa se afastou.






Salvador tentou lembrar-se, mais uma vez, das palavras que deveria dizer antes de entrar no deserto. Nada. Sem querer, meteu a mão no bolso e então sentiu a pedra. Retirou-a imediatamente e encostou-a ao ouvido. No mesmo instante, ouviu a voz do velho mágico:

- Olá, Salvador. Vejo que precisas de mim. Nesta altura, penso que deverás estar à entrada do deserto do esquecimento. Não entres, de modo nenhum, sem pronunciares as palavras mágicas.

Salvador escutou com atenção o velho mágico. Então, sem hesitar, repetiu as palavras.

No deserto vou entrar,
Mas ai de mim que me posso esquecer
Do meu nome e para sempre lá ficar.
Para tal não acontecer,
Deverei o meu nome pronunciar
Sete vezes enquanto começo a correr.

Salvador gritou sete vezes o seu nome, enquanto corria a toda a velocidade pela areia quente e dourada do deserto. Os caranguejos, diante de tamanha agitação, fugiam assustados, mexendo os bigodes para cima e para baixo. Quando Salvador parou de correr e começou a andar mais devagar, o sol já se tinha escondido há muito tempo e as primeiras estrelas começavam a aparecer no céu.





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