domingo, 12 de julho de 2015

O mundo esquecido (9)


Capítulo 9 - De volta a casa

Quando a luz voltou a iluminar o mundo à sua volta, Salvador demorou a perceber onde se encontrava. Desde que tinha sentido que se elevava no ar tinha perdido a noção de tudo, e as lembranças do que se teria passado até ao momento presente eram como uma folha em branco. Era como se tivessem sido apagadas com uma borracha. Piscou os olhos (a luz era mesmo muito forte) e apercebeu-se de duas coisas: que um raio de sol estava pousado na sua cara, vindo de uma janela com as cortinas abertas, e que estava num quarto, deitado numa cama coberta com uma colcha amarela bordada com estrelas azuis. Percebeu então que estava no seu quarto. Como teria ido lá parar? Quando tinha caído no buraco negro, estava na rua, junto ao muro do pomar do Senhor Joaquim, não estava? Salvador tinha imaginado que a saída do mundo esquecido seria a mesma, ou seja, o buraco. Não entendia. Sentou-se na cama. Viu que a sua mão estava firmemente fechada, e que escondia alguma coisa no seu interior. Abriu-a. Era uma pedra branca, parecida com um pequeno ovo. A pedra que o velho mágico lhe tinha oferecido! Ao seu lado, pousado em cima da colcha, estava um livro, Alice no País das Maravilhas. Pegou-lhe cuidadosamente e olhou a menina que estava desenhada na capa: Alice. Se havia alguém capaz de entender o que lhe tinha acontecido, era ela. Através da janela, Salvador olhou para o céu. Havia uma nuvem… Parecia mesmo um caranguejo com bigode. Não pôde deixar de rir.

Foi então que ouviu a voz da mãe:

- Salvador! Acorda! São horas de ires para a escola. Hoje é o primeiro dia de aulas. Não queres chegar atrasado, pois não? Espero que ontem não tenhas ficado a ler até tarde.


Salvador sorriu. A noite anterior tinha sido preenchida com muito mais do que leitura. Tinha feito uma viagem ao mundo esquecido, mas isso era algo que teria de guardar só para si. Ninguém acreditaria. Excepto Alice. Talvez um dia a viesse a encontrar, num dos mundos fantásticos que se escondem para lá de buracos inesperados.







O mundo esquecido (8)


Capítulo 8 - A gruta das mil vozes

Salvador ficou um bom bocado a olhar as águas verdes do lago. Esperava, de repente, ver surgir de novo as criaturas que habitavam os nenúfares, com as compridas cabeleiras verdes e os olhos em forma de peixe. Mas tudo se mantinha calmo e em silêncio. Das criaturas nem sinal. Resolveu continuar o caminho que o levaria até à gruta das mil vozes. Por onde deveria ir? Olhou à sua volta: à esquerda, estendia-se um campo de milho, com grandes maçarocas amarelas; à direita, havia um bosque, com árvores tão próximas umas das outras que uma pessoa dificilmente caberia entre elas. Pareceu a Salvador que nenhum destes poderia ser o caminho a seguir. À sua frente, desenrolava-se um carreiro de terra batida que se perdia mais adiante por entre uns arbustos muito altos.  Parecia ser esta a opção certa, e ele avançou, determinado. Contudo, depois de ter atravessado os arbustos, Salvador encontrou uma enorme rocha, e teve de voltar para trás, regressando para junto do lago. Não sabendo qual a direção a seguir, Salvador decidiu consultar o velho mágico. Retirou a pedra branca do bolso, encostou-a ao ouvido e ouviu a voz que já conhecia:

- Imagino que tenhas convencido os nenúfares a levarem-te para o outro lado do lago. Acertei? Nesse caso, deves estar indeciso quanto ao caminho a seguir. Pois bem, a gruta das mil vozes esconde-se atrás do bosque que está à tua direita. Terás de o atravessar. Vais ver que não é difícil, se imitares o vento. Ânimo, Salvador, o fim do caminho já está muito perto!


Depois de escutar as palavras do mágico, Salvador olhou para o bosque: era escuro e triste, porque o espaço entre as árvores era tão apertado que os raios de sol não conseguiam lá entrar, e os troncos estavam tão encostados uns aos outros que ele achou que não conseguiria caminhar entre eles. Aproximou-se das primeiras árvores e tentou passar entre os seus troncos: cabia mesmo à justa, mas tinha de encolher a barriga e suster a respiração. Sentiu-se desanimado. Por aquele andar, demoraria uma eternidade a chegar à gruta das mil vozes. O velho mágico tinha falado em imitar o vento. O que quereria ele dizer? Bem, o vento soprava… Seria assim tão fácil? Salvador ficou parado em frente de duas árvores e, enchendo o peito de ar, soprou com toda a força de que foi capaz. Então, como que por magia, os troncos afastaram-se, como se tivessem sido inclinados por uma forte ventania. Ele não esperou que voltassem a endireitar-se e entrou a correr pelo bosque. À medida que ia avançando, Salvador ia soprando, como se fosse ele próprio o vento, e as árvores iam-se curvando, permitindo que ele passasse. Rapidamente cruzou as últimas árvores e teve de se sentar um momento para recuperar o fôlego. Tinha sido uma corrida e tanto!



De repente, à sua frente, estava a gruta das mil vozes. Salvador esperava encontrar uma rocha, enorme e imponente, com uma porta escura e misteriosa. Mas o que tinha diante de si era uma espécie de casa, tão pequena como as dos anões da aldeia das casas risonhas, com as paredes talhadas em pedra, onde assentava uma grande laje coberta de musgo. Não tinha porta, apenas uma abertura meio escondida por roseiras bravas. A gruta estava silenciosa, o que levou Salvador a pensar porque se chamaria gruta das mil vozes. Onde estavam elas? Intrigado, avançou até junto da entrada e afastou as roseiras, espreitando para o interior da gruta. Havia uma leve claridade, e Salvador viu que estava vazia. Entrou, e no instante em que o fez um coro de muitas vozes (seriam mil?) fez-se ouvir. Cantavam uma canção que ele nunca tinha ouvido, e que era ao mesmo tempo triste e alegre, se é que tal era possível. A Salvador pareceu que sim.

Ai de nós, pobres vozes
Que cantamos para sempre
E ninguém nos ouve.
É uma tristeza sem fim.
Mas então tu chegaste
E alegraste o nosso coração.
Agora somos felizes
Nesta gruta encantada
Viva, viva!

Salvador espreitou em todos os cantos à procura de gente, mas não havia ninguém. Eram apenas vozes. Ele sabia que teria de falar com elas. O velho mágico tinha-lhe dito que as vozes lhe apresentariam um enigma que ele teria de decifrar, pois só assim lhe indicariam o caminho para chegar a casa. Achou melhor esperar que elas se lhe dirigissem, até porque não sabia o que dizer. A seguir à canção, ouviu uma conversa animada, depois risos, depois o seu nome.

- Olá, Salvador. Temos estado à tua espera.

- Como sabem o meu nome? Como sabiam que eu vinha?

- O mundo esquecido é muito pequeno, as notícias correm como o vento. Sabemos que queres voltar para casa, certo?

- É o que eu mais quero, embora goste muito do vosso mundo. Mas está na hora de voltar. Podem ajudar-me?

- Claro que sim. A porta de saída está dentro desta gruta, somos nós que a guardamos. Mas vais ter de responder a uma pergunta, na verdade é um enigma que vais ter de decifrar.

- Está bem. E se eu não conseguir responder?

- Apenas te indicaremos o caminho se responderes. Caso contrário, ficarás para sempre no mundo esquecido.

Salvador estremeceu. E se não soubesse a resposta? Ainda tinha a pedra branca do mágico, poderia recorrer a ela, mas ele tinha-lhe dito que a magia no seu caso não resultaria. Teria de ser ele a encontrar sozinho o caminho, não era? As vozes voltaram a falar:

 - O enigma é este:

Às vezes estamos alegres
E somos brancas como algodão.
Outras vezes ficamos tristes
E somos cinzentas e choramos.
Gostamos de brincar com o vento
E mudamos de forma para o enganar.
O que somos?

Salvador ficou a pensar. Então sorriu: não podia ser mais fácil! A resposta era aquilo de que ele mais gostava. Disse, sem hesitar:

- São as nuvens.

No instante em que pronunciou estas palavras, Salvador sentiu que era levantado no ar por mãos invisíveis. Depois, de repente, só havia escuridão.





O mundo esquecido (7)


Capítulo 7 - O lago dos nenúfares

Naquela noite, Salvador adormeceu enroscado sobre a areia do deserto do esquecimento. Ele bem tentou resistir ao cansaço e ao sono e, quando sentia que as suas pálpebras se queriam fechar, abria logo os olhos muito depressa. Olhava então atentamente o céu e começava a contar as estrelas. Quando lhes perdia a conta (eram tantas!) observava os caranguejos a andar para lá e para cá, a agitar os bigodes. Mas depois acabou por ser vencido pelo sono.

Quando acordou, o sol já tinha nascido há muito tempo. Sentou-se, esfregou os olhos e olhou à sua volta. Quanto tempo faltaria para chegar ao fim do deserto? Salvador não fazia a mais pequena ideia. Como não queria passar ali outra noite, decidiu que o melhor seria pôr-se novamente a caminho. Levantou-se, sacudiu a areia da roupa e recomeçou a correr. Ainda não se tinha passado muito tempo quando viu, não muito longe, o que pareciam ser árvores. Isso significava que já estava perto. Salvador usou toda a força de que foi capaz e correu, correu muito, durante um tempo que parecia não ter mais fim. Quando finalmente o deserto terminou e ele pisou de novo erva fresca, deu um grito de pura felicidade.


As árvores que Salvador tinha visto ao longe eram afinal macieiras, carregadas de enormes maçãs vermelhas. Aproveitou para colher algumas e sentou-se encostado ao tronco de uma delas. Enquanto trincava as maçãs, Salvador lembrou-se do pomar do Senhor Joaquim e do buraco negro encostado ao muro. Mais alguém teria caído e chegado ao mundo esquecido? Ou seria que o Senhor Joaquim já tinha descoberto o buraco, tapando-o para sempre? Nesse caso, como poderia ele voltar a sair e regressar a casa? Eram perguntas a que Salvador não sabia responder. De repente sentiu-se triste e desanimado, mas então lembrou-se do que lhe tinha dito o velho mágico: ele era um menino especial e por isso tinha entrado no mundo esquecido, mas se fizesse o caminho que o mágico lhe tinha indicado (e com a sua ajuda) iria certamente conseguir voltar. Mais animado, levantou-se e retomou a caminhada. 




O lago dos nenúfares apareceu pouco tempo depois. Salvador tinha deixado para trás o pomar de macieiras, a seguir tinha atravessado um pequeno bosque e, de repente, deu com o lago. E era imenso, tão grande que pareceu a Salvador que estava diante do mar. Só que isso não era possível, porque o mar era azul e o lago era verde, como se estivesse coberto de folhas gigantes. Quando se aproximou da margem, viu que eram de facto folhas largas e muito lisas que lhe davam aquela cor, embora salpicadas aqui e além de pequenas flores brancas e rosadas. As folhas flutuavam na água e cobriam-na completamente. Salvador ficou a pensar que plantas seriam aquelas, e de súbito lembrou-se: este era o lago dos nenúfares, portanto só podiam ser nenúfares, claro. Ficou a olhá-los durante algum tempo. As folhas largas pareciam peças de roupa a flutuar nas águas, e Salvador imaginou que eram saias rodadas. Foi então que o lago acordou. De repente, uma figura ergueu-se de dentro da água, como se tivesse estado debruçada com a cabeça no fundo do lago. As folhas eram mesmo a sua roupa, pois estavam fixas na sua cintura. Pareciam mesmo meninas gorduchas a quem a saia ficava apertada. Tinham longos cabelos verdes e os olhos em forma de peixe. Que criaturas seriam aquelas? Salvador nunca tinha visto nada igual. Foram-se erguendo aos poucos, uma aqui, outra acolá. Então, uma delas viu Salvador, assustou-se e deu um grito. Como se fosse um sinal, centenas de figuras começaram a aparecer, vindas do fundo do lago, e de repente uma multidão enchia as suas águas. Estavam todas viradas na direção de Salvador e ficaram a olhá-lo. Sem saber o que fazer, perguntou-lhes:

 - Quem são vocês?

- Ora, somos nenúfares, o que mais haveríamos de ser?

- Nunca vi nenúfares como vocês.

- Também nunca vimos ninguém como tu! Quem és?

- O meu nome é Salvador. Preciso de atravessar o lago, para chegar à gruta das mil vozes. Só assim poderei regressar a casa. Podem ajudar-me?

- Porque é que haveríamos de te deixar atravessar para o outro lado? Vens de um mundo diferente, não te conhecemos. Teríamos de pensar muito bem no assunto.

A seguir viraram-lhe as costas e cruzaram os braços, parecendo que estavam à espera de alguma coisa. Então, Salvador lembrou-se do que o velho mágico lhe tinha dito: para atravessar o lago, teria de convencer os nenúfares a ajudá-lo. O que quereria ele dizer? Tirou a pedra do bolso e levou-a ao ouvido. Ouviu a voz do mágico:

- Olá, Salvador. Deves estar com problemas com os nenúfares. Eles são muito vaidosos e amuam com facilidade. Tens de os elogiar, dizer-lhes como são bonitos, e pedir-lhes para dançarem. Enfim, tens de os cativar. Só assim te ajudarão.

Salvador ficou espantado. Onde já se viu ficar amigo de um nenúfar? Bem, a verdade é que não tinha escolha. Chamou-os e disse:

- Posso falar um bocadinho com vocês? A verdade é que acho que são os nenúfares mais bonitos que já vi e gostaria de vos ver dançar. Fariam isso por mim? Eu ficaria mesmo contente!

Os nenúfares viraram-se todos ao mesmo tempo e iniciaram a dança mais bela que Salvador já tinha visto: tinham os braços erguidos no ar e rodopiavam muito devagar, sem saírem do mesmo lugar. As folhas (que pareciam mesmo saias) rodavam sobre a água, desenhando círculos. Ao mesmo tempo que dançavam, cantavam baixinho, imitando o som de água a correr. Salvador estava encantado.

- Agora, se ainda quiseres, podemos ajudar-te a atravessar para o outro lado.

Uniram então as mãos, criando uma ponte, e Salvador caminhou sobre ela e atravessou o lago, sem se molhar uma única vez. Virou-se para lhes agradecer, mas eles já se debruçavam, mergulhando as cabeleiras verdes dentro de água. E, de repente, o lago voltou a ser uma enorme e quieta mancha verde.






sábado, 11 de julho de 2015

O mundo esquecido (6)


Capítulo 6 -  O deserto do esquecimento

No dia seguinte, Salvador acordou muito cedo. Quando abriu os olhos estava sozinho, sentado no sofá vermelho da sala do velho mágico. Não se lembrava do momento em que tinha adormecido, mas pelo visto tinha passado ali a noite. A última imagem que guardava na memória mostrava o velho mágico a oferecer-lhe uma pedra, redonda e branca como um pequeno ovo. Enfiou a mão no bolso das calças e lá estava ela. Sabia que não a podia perder e voltou a guardá-la no mesmo sítio. Então, ouviu passos que se aproximavam. A anã que tinha conhecido no dia anterior entrou na sala, usando desta vez um avental cor-de-rosa com muitos folhos. Nas mãos trazia uma bandeja, coberta com um pano branco.

- Bom dia, Salvador. Dormiste bem? Trago-te o pequeno-almoço. Precisas de recuperar todas as tuas forças antes de partires.

Ao dizer isto, a anã destapou a bandeja e o que Salvador viu fez-lhe crescer água na boca: havia torradas com mel, biscoitos, leite e fruta. Ele devorou tudo até à última migalha, enquanto a anã, sentada no outro sofá com as mãos pousadas em cima do avental, olhava espantada tamanho apetite. A seguir teve um ataque de riso, tão grande que não conseguia parar. Ria, ria, ria. Até que conseguiu dizer, já mais calma:

- Comes sempre assim? És um verdadeiro comilão! Como tu, só conheço o anão barrigudo. Agora, tens de partir. O velho mágico está a dormir, não me atrevo a acordá-lo. Às vezes, fica adormecido durante dias. Mas pediu-me para te dizer que estará sempre contigo, basta que uses o presente que ele te ofereceu.

 - Obrigado pelo pequeno-almoço.

 - Ora essa, não tens que agradecer. Ah, Já me esquecia, que cabeça a minha! O caminho que tens de seguir é este: depois de saíres pelo portão, vira à direita e segue sempre em frente. Não tem nada que saber. Adeus.

Salvador despediu-se da anã, que lhe deu um abraço por entre gargalhadas, e partiu em direção ao deserto do esquecimento. Enquanto atravessava a praça, e depois a rua, Salvador estranhou o silêncio. Se bem se lembrava, quando tinha chegado à aldeia, as casas riam a bandeiras despregadas (ele próprio tinha tido um repentino ataque de riso). Reparou então que as portas se começavam a abrir muito devagarinho, como se bocejassem e estivessem a acordar. Mas à medida que Salvador avançava começaram a rir baixinho, como se não quisessem acordar os anões, que ainda deviam estar a dormir.

Quando chegou junto do muro, o portão estava entreaberto, tal como quando tinha chegado, mas do guarda não havia nem sinal. Salvador saiu e virou à sua direita, entrando num campo coberto de relva macia e muito verde, deixando para trás a aldeia das casas risonhas. Pensou então no que o velho mágico lhe tinha dito: quem atravessava o deserto do esquecimento corria o risco de se esquecer de quem era e perder-se para sempre na sua areia dourada; para o evitar, era preciso dizer umas palavras antes de lá entrar. Mas que palavras seriam essas? Salvador não se lembrava. Decidiu continuar a caminhar, quando lá chegasse logo veria o que fazer.

A partir de certa altura, a relva foi ficando cada vez mais amarela e as poucas árvores que existiam desapareceram. Ao olhar para o céu, Salvador viu que a luz do sol o tornava muito azul e brilhante (viu também que continuava a não haver nuvens) e de repente sentiu muito calor. Foi então que viu o princípio do deserto. Foi-se aproximando, até que parou no sítio exato onde ele começava, tendo o cuidado de não avançar nem mais um passo. A areia tinha uma cor dourada, e estendia-se a perder de vista. Aqui e além, viam-se pequenas manchas azuladas. Pareciam estrelas. Assim de repente, Salvador achou que o deserto fazia lembrar a colcha que a avó lhe tinha oferecido e que estava estendida na sua cama: amarela, bordada com estrelas azuis. Então, aconteceu uma coisa: as manchas começaram a mover-se. Salvador curvou-se e olhou atentamente. O que pensou serem estrelas eram afinal pequenos caranguejos. E em cima da carapaça tinham fartos bigodes azuis, mais parecendo bocas que caminhavam. Um deles, com um bigode muito farfalhudo, chegou junto de Salvador, parou mesmo junto dos seus pés, mas depressa se afastou.






Salvador tentou lembrar-se, mais uma vez, das palavras que deveria dizer antes de entrar no deserto. Nada. Sem querer, meteu a mão no bolso e então sentiu a pedra. Retirou-a imediatamente e encostou-a ao ouvido. No mesmo instante, ouviu a voz do velho mágico:

- Olá, Salvador. Vejo que precisas de mim. Nesta altura, penso que deverás estar à entrada do deserto do esquecimento. Não entres, de modo nenhum, sem pronunciares as palavras mágicas.

Salvador escutou com atenção o velho mágico. Então, sem hesitar, repetiu as palavras.

No deserto vou entrar,
Mas ai de mim que me posso esquecer
Do meu nome e para sempre lá ficar.
Para tal não acontecer,
Deverei o meu nome pronunciar
Sete vezes enquanto começo a correr.

Salvador gritou sete vezes o seu nome, enquanto corria a toda a velocidade pela areia quente e dourada do deserto. Os caranguejos, diante de tamanha agitação, fugiam assustados, mexendo os bigodes para cima e para baixo. Quando Salvador parou de correr e começou a andar mais devagar, o sol já se tinha escondido há muito tempo e as primeiras estrelas começavam a aparecer no céu.





sexta-feira, 10 de julho de 2015

O mundo esquecido (5)



Capítulo 5 - Os conselhos do velho mágico

Salvador estava estendido no chão, enquanto o anão dançarino girava e ria à sua volta. Viu que a porta da casa mais alta tinha sido entreaberta e que alguém estava parado na soleira. Levantou-se o mais depressa que conseguiu, envergonhado. Que altura mais despropositada para cair! À sua frente estava uma anã com um avental branco comprido, de braços cruzados e ar aborrecido.

- Mas que brincadeira vem a ser esta? Ah! Aí estás tu! Logo vi que estavas por detrás de todo este rebuliço!

Apontava para o anão dançarino, que rodopiava sem parar e que, ao ver-se descoberto, se afastou para longe, a rir perdidamente. A anã olhou então para Salvador e, com palavras doces, convidou-o a entrar.

 - Entra, entra. Desculpa, tive de ralhar com o anão dançarino, ele não tem emenda. Mas não sou sempre assim, resmungona. Sou até bastante bem disposta! Na aldeia das casas risonhas é impossível não estar alegre. Tu deves ser o Salvador. O guarda avisou-me de que irias chegar para falar com o velho mágico. Ele é o chefe da nossa aldeia.

 - Ele é mágico? Um anão mágico?

- Vem. Ele vai explicar-te tudo.

Pegando na mão de Salvador, a anã conduziu-o por um corredor estreito e de paredes tão altas que, olhando para cima, não era possível ver onde terminavam. O facto de o chão ser muito inclinado, fazia com que eles tivessem de andar muito depressa. Era como se Salvador e a anã tivessem sido engolidos por um animal gigantesco e escorregassem pela sua garganta. Salvador estremeceu: que ideia mais disparatada! 




Entraram então numa sala muito pequena, onde cabiam mesmo à conta dois sofás de veludo vermelho, uma mesa redonda e uma estante carregada de livros. Num dos sofás estava sentado o velho mágico. Ao contrário do que Salvador tinha imaginado, o mágico não era um anão. Diante de si estava um homem encurvado e muito magro, de olhos cor de violeta e longas barbas brancas. Os braços, de tão magros, estavam dobrados de tal forma que pareciam asas, o que o fazia parecer um pássaro. Parecia ter uma idade avançada, e talvez por isso não se levantou quando eles entraram. Apenas sorriu. Salvador gostou imediatamente dele. Então, o velho mágico falou:

- Vem sentar-te ao pé de mim. Sei que o teu nome é Salvador e que vieste do mundo para lá do buraco negro. Sei que gostas de nuvens e que inventas histórias quando olhas para elas. Vieste ver-me porque gostarias de encontrar o caminho de volta para casa. É isso?

Salvador sentou-se, mas não respondeu logo. Ficou a olhar para o velho mágico, fascinado. Como saberia ele o que lhe tinha acontecido, e que gostava de nuvens, se ainda não tinha dito nada? Finalmente conseguiu responder.

- Sim, é isso.

Depois ficou um bocadinho a pensar e perguntou:

- O senhor por acaso conhece uma menina chamada Alice? 

- Não, quem é?

- A Alice também caiu num buraco e encontrou o país das maravilhas. Mas aí havia um gato, e um coelho, e uma rainha, e um chapeleiro louco. Sabe dizer-me se estou nesse país?

 - Não sei que país é esse. Sabes, Salvador, existem muitos lugares fantásticos, só à espera de serem encontrados. Mas nem sempre é fácil descobrir a forma de lá chegar, porque as portas apenas se abrem para alguns. Tu encontraste a entrada para um desses mundos, neste caso o mundo esquecido. Acredito que não foi por acaso. Acho que és um menino muito especial e só por essa razão é que estás aqui.

- Pois, o problema é que não sei voltar. O senhor sabe fazer magia?

- Modéstia aparte, sei alguma coisa sobre o assunto.

- Então podia fazer-me regressar a casa?

- Infelizmente, Salvador, a magia no teu caso não iria resultar. Vais ter de percorrer um longo caminho e de ultrapassar alguns obstáculos para poderes regressar. Mas posso ajudar-te nessa tarefa, dando-te pistas que deverás seguir. Caso contrário, não conseguirás. A entrada para o teu mundo fica para lá do deserto do esquecimento, depois do lago dos nenúfares, no interior da gruta das mil vozes.

- A gruta das mil vozes? De quem são essas vozes?

- São vozes esquecidas, perdidas no tempo, ninguém sabe a quem pertencem. Mas elas irão guiar-te e deverás escutá-las com muita atenção. Podes dormir aqui esta noite e amanhã bem cedo deves partir, porque o caminho é longo.

Nessa altura, o mágico esticou o braço (que parecia mesmo a asa de um pássaro) e pegou numa caixa que estava pousada sobre a mesa. Abriu-a com muito cuidado e tirou lá de dentro uma pedra branca, redonda e pequena como um ovo de codorniz, que ofereceu a Salvador. Disse-lhe:

- Esta é uma pedra mágica, Salvador. Sempre que te sintas perdido e sem saberes o que fazer, encosta-a junto do ouvido. Então, ouvirás a minha voz e saberás como continuar o caminho. Não podes perdê-la, de modo nenhum, ou não conseguirás voltar a casa. Agora, deves descansar.

A seguir, o velho mágico passou a mão sobre os olhos de Salvador, que ficou a dormir profundamente. Embora ele estivesse adormecido, o mágico disse-lhe ainda muitas outras coisas, para que as recordasse no momento certo. 




quinta-feira, 9 de julho de 2015

O mundo esquecido (4)


Capítulo 4 - O anão dançarino


Os anões permaneciam junto às casas e seguiam Salvador com o olhar e com um sorriso estampado nos rostos, enquanto ele avançava para a praça. As casas continuavam a tocar a sua orquestra de gargalhadas. Salvador nunca tinha sentido ao seu redor tamanha manifestação de felicidade. Por momentos, quase esqueceu que era ali um estranho e deu por si a rir sem parar, de pura alegria. A certa altura, o ataque de riso sacudiu-o de tal forma que teve de parar e apoiar as mãos nos joelhos. Estava sem fôlego. Quando finalmente se conseguiu endireitar, retomou o caminho até à praça, ainda a sorrir e a cantarolar.




A praça era muito pequena e à sua volta apenas existiam quatro casas, sendo uma delas maior que todas as outras da aldeia. Era também diferente: estava pintada de branco e o telhado era de telhas vermelhas. A porta era mais alta e tinha, além das duas janelas, uma varanda no andar superior, enfeitada com vasos de flores vermelhas e amarelas. Pareceu a Salvador que era parecida com as casas que existiam na vila onde morava, mais coisa menos coisa. E estava silenciosa. No momento em que Salvador se aproximou do centro da praça, sentiu que alguém lhe tocava no ombro. Virou-se e deu de caras com um anão que sorria de orelha a orelha, enquanto saltitava ora num pé ora no outro, como se dançasse. Tinha os cabelos e a barba ruivos e usava sobre os ombros uma capa azul que esvoaçava enquanto ele se movia. Deu então um salto para trás, cruzou os braços e olhou muito sério para Salvador.

- Tu, quem és?

- O meu nome é Salvador. Sou um menino. Tenho dez anos e ando na escola.

- Não és um anão? Vendo bem, não tens barbas… sabes dançar?

Ao dizer isto, o anão iniciou uma série de piruetas, a seguir rodopiou em voltas e mais voltas, até parar, sorridente, ao lado de Salvador.

- Não sei dançar. Eu gosto é de correr. E de olhar as nuvens. O meu sonho é apanhar uma nuvem e segurá-la só um bocadinho nas minhas mãos.

O anão deixou de sorrir, parecendo ter ficado confuso.

- Tens sonhos estranhos, menino. Nunca ouvi tamanho disparate! Onde já se viu alguém querer apanhar uma nuvem?! Como chegaste até aqui?

- Entrei num buraco negro que estava no passeio, junto ao muro do pomar do Senhor Joaquim. Foi uma coisa que aconteceu sem eu querer. Escorreguei. A borboleta disse que este é o mundo esquecido. É um país?

- País? Não sei o que é um país. É simplesmente o mundo esquecido, e não me perguntes porque é que é esquecido. Aqui ninguém se lembra de ele ter outro nome. Também não me lembro de alguém algum dia o ter visitado, além de ti.

- E tu, como te chamas? Por acaso és o chefe da aldeia? O guarda do portão disse-me para falar com ele. Sabes, para me ajudar a encontrar o caminho para casa.

- Eu sou o anão dançarino. Como deves ter reparado, dançar é o que faço de melhor. O chefe vive naquela casa que ali vês, do outro lado da praça.

- Podes levar-me até junto dele?

- Com todo o prazer. Contudo, com uma condição. Vais ter de dançar durante todo o caminho até lá chegares. Aceitas?

Salvador não sabia dançar, mas estava fora de questão recusar o convite do anão, ou não poderia falar com o chefe da aldeia. Acenou com a cabeça e disse que aceitava. O anão pegou-lhe na mão e, arrastando-o em piruetas e saltos divertidos, com muitas gargalhadas à mistura, conduziu-o através da praça. Mesmo à entrada da casa mais alta, Salvador tropeçou por causa de um puxão que o anão deu ao seu braço (quando saltou numa cambalhota), e ficou estatelado no chão. Foi então que a porta, muito devagarinho, se abriu.